domingo, 26 de julho de 2009

Sobre Itens!





Querido Marcelo e companheiros do residir!

Olhe, de tantas entranças e passagens, a gente fica tentando se virar para conectar. Mesmo querendo, o desejo já não basta, porque a quantidade, não só do que está, mas também do que emerge, produz concorrências, inclusive fora da percepção, para podermos nos conectar.

Mas agora me conecto!

Diante dessas palavras, acima, vejo que seu trabalho aqui, Marcelo, nessa mini-residência, não foi apenas um trabalho artístico (numa restrição disciplinar do conhecimento e das ações). Apresentou-se também enquanto um trabalho filosófico e ético. Pensar sobre nós mesmos, enquanto imersos na cultura e ao mesmo tempo, como criadores da mesma, enquanto pessoas, é de alguma forma ampliar a possibilidade da Percepção. Afinal, para perceber, nessas condições, precisamos desempenhar no mínimo duas posições no espaço (isso contraria algum lei física?).

Um ponto que é o de sujeito da própria experiência. Nesse, ao mesmo tempo nos sujeitamos às condições legalizadas por qualquer contexto de imersão e ação (força da gravidade, linguagem, entre outros), e ao mesmo tempo desejamos, ou seja, exprimimos e imprimimos força no contexto, provocando-o e configurando-o também. Já o outro ponto, implica na capacidade de sermos observadores da própria experiência. Veja bem, um exercício precioso, o qual garante a nós, a possibilidade de não apenas rolarmos no fluxo do experimentar, mas também perceber essa experimentação e os modos nos quais essa realidade pessoal e subjetiva se apraz e se configura. É dessa e essa capacidade, de observar a própria experiência que resulta o instrumento/habilidade de auto-crítica, auto-reflexão, auto-análise.

O grande, bem como os simples exercícios de percepção os quais nos foram postos, além de lidarem com essas condições pessoais, ainda o faziam em direção à construção de um discurso cultural, político e, por assim ser, também estético, da importância do PESSOAL na CULTURA desse nosso aqui-agora em primeira pessoa. O que se alinha com nossos prazeres e gravidades é que esse pessoal, por ti trazido e por nós, construídos, na mini-residência, reformula a noção indivualista produzida pela modernidade (renascimento/antropocentrismo, revolução industrial/propriedade privada, vogue world/fama). Destitui-se o valor do pessoal como auto-afirmação identitária e, enquanto, oposição a um outro (pessoa, sociedade, natureza, mundo...).

Nasce daí, mas um importantíssimo exercício humano, necessário aos dias atuais, que é a noção de um pessoal compartilhável. Em direção a uma Cultura do Compartilhamento, a exposição do Pessoal pode não apenas ser concebida, mas desejada, pois é nessa exposição que se abrem os canais de compartilhamento. Tais canais, revelam que na experiência singular, ligações podem ser feitas, resvalando numa epistemologia do ser, não mais isolada - na essência de cada um - ainda que respeitando a experiência particular.

É daí, como dito, proposto e provocado por você, nos exercícios criativos e nos resultados artísticos da intervenção, que chegamos à noção de que as lutas de nosso tempo, por mais que ainda possam ser configuradas nas dicotomias (tecnologia/natureza, desevolvido/emergente, pobre/rico, negro/branco, entre outras), já apresentam-se no macro tão misturadas, que são, assim, muito mais lutas pessoais - de si, consigo mesmo (valores, preconceitos, incompetências, desejos, expectativas, etc.).

Tais lutas ali reveladas e construídas, falam de um lugar próprio, ou de um auto-lugar, que se desloca no fluxo de ser e estar. Somos/estamos a cada momento/lugar. Sendo/estando, no exercício de viver a experiência e se perceber nela, podemos, ao mesmo tempo, empoderarmos e falirmos, dignamente, diante de tantos fluxos de possibilidades, considerando, para tal, não mais os modelos, cânones culturais, nem a auto-refência, o egocentrismo, o hedonismo - mas sim a auto-crítica, a auto-análise como um duto, ao mesmo tempo do conhecido e do devir.

Se ser/estar sujeito/pessoa, não é algo isolado e sim compartilhado, o exercício da auto-crítica e auto-análise implica numa revisão local que convoca o si mesmo, de maneira centrífuga. Pois ao mesmo tempo que se considera, considera os outros, o "ao redor", pois se entende como um dentro altamente contaminado de foras, um dentro sem muros, sem barreiras, permeável, múltiplo, ou seja, uns dentros-foras.

Ao considerarmos essa realidade algo experienciável e experienciado (não apenas a beleza da retórica), lidamos com questões de ordem prática trazidas pelos seus adesivos: Ítem de primeira necessidade.

Diante da múltiplicidade, autonomia então, parece muito menos um exercício de ter voz e lugar no mundo (como fora para proletários, negros, feministas, gays, entre outros; e ainda o é lido assim), tornando-se muito mais um exercício de escolha. Escolher entendendo tanto a direção do próprio desejo e satisfação, quanto o quão esse desejo e satisfação, tão pessoal e aparentemente interno, está vinculado ao outro (pessoa, sociedade, meio-ambiente, etc.), não só como objeto, mas também como ressonâncias de feedback.

Recebendo e encarando essa luta pessoal, revelada e construida enquanto uma verdade (com v minúsculo) de ser/estar, elaborando-me nas atualizações auto-reflexivas e auto-críticas compartilhadas, vamos nos refazendo-me, com vistas nesses nossos/meus ítens de primeira necessidade.

Você me tocou, tocou-se, tocou-nos, os tocou, o tocamos, o toquei, nos tocamos a nós.

Mando em anexo o desenho, resultado afetivo, proveniente de impressões no corpo de Luiz, ao ver a intervenção no Corredor da Vitória.

Espero poder fazer outros encontros em outros trajetos. ;)

Duto Santana- Bailarino e pesquisador
Mestre em Dança, PPGDANÇA.
Especialização em Estudos Contemporâneos em dança, UFBA.
Professor da Escola de Dança da FUNCEB/BAHIA.
Desenho- Luis Cláudio Motta